O Big Brother Brasil como reflexo e palco de debates raciais complexos, expondo chagas sociais do país que deveriam ir muito além das redes sociais
Seja você fã ou não de reality shows, é provável que já tenha tomado conhecimento de que começou mais uma edição do Big Brother Brasil. O programa de televisão envolve a convivência de pessoas que não tinham contato prévio, passando aproximadamente três meses confinadas em uma casa, competindo por um prêmio milionário.
O cenário do Big Brother Brasil tem se revelado como um palco inusitado para debates raciais complexos, proporcionando uma visão escancarada das feridas sociais que o Brasil carrega desde a abolição da escravidão.
Já nos primeiros dias, um incidente ocorreu, oferecendo subsídios para análises equivocadas feitas geralmente pela branquitude. Esse episódio é particularmente significativo para aqueles que sustentam a noção errônea de que “o racismo é fomentado pelos próprios negros” ou, ainda mais problemático, a crença de que os casos mais severos de discriminação racial provêm de indivíduos negros dirigidos a outros negros. Neste caso específico, um participante negro dirigiu termos ofensivos, incluindo a expressão pejorativa “macaca”, a uma colega também negra.
O debate, naturalmente, está se desenrolando intensamente nas redes sociais. É possível observar uma expressiva manifestação de indignação de muitos, enquanto outros tentam justificar o ocorrido alegando falta de familiaridade com o debate racial. Conforme previsto, algumas pessoas estão pedindo pela expulsão do participante em questão por seu comportamento racista, ressaltando, porém, que punições graves nunca são aplicadas a participantes brancos que tenham cometido a mesma transgressão.
Desde o início da sua história, o Brasil enfrentou dificuldades em lidar com debates raciais devido à escassez de políticas efetivas de reparação e promoção da igualdade racial. A ditadura militar, por exemplo, institucionalizou o mito da democracia racial, silenciando e perseguindo militantes do movimento negro que lutavam pela igualdade. Esses traumas sociais persistem e contribuem para nossa dificuldade em discutir abertamente o racismo, empurrando o problema para debaixo do tapete.
Histórico de racismo na casa mais vigiada do Brasil
O BBB revisita anualmente a discussão racial de maneira categórica e televisionada para milhares de brasileiros e muitos desses expectadores jamais tiveram contato com o debate aprofundado sobre raça no país. Assim, o reality show se torna não apenas uma vitrine de entretenimento, mas também um reflexo do problema racial ainda não resolvido em nossa sociedade.
Na edição de 2023, o participante Fred Nicácio sofreu racismo religioso e confrontou abertamente seus agressores. Mas, outros casos já haviam acontecido em rede nacional.
Na edição 21, João Luiz Pedrosa enfrentou comentários racistas relacionados ao seu cabelo, gerando repercussão nas redes sociais. Contudo, o participante responsável pelas agressões não sofreu consequências significativas. O cancelamento da cantora Karol Koncá também provocou questionamentos sobre a seletividade nas críticas, revelando um padrão de julgamento desigual para participantes negros que protagonizaram discussões duvidosas no programa.
A intolerância religiosa também aconteceu em 2019, quando a edição viu participantes protagonizando falas preconceituosas e tendo Rodrigo França, praticante de religião de matriz africana, como alvo das agressões. Surpreendentemente, as falas racistas não impediram a participante responsável de conquistar o título de campeã, demonstrando uma aprovação das atitudes discriminatórias por parte do público.
Racismo não deveria ser entretenimento
É fato: o Big Brother Brasil, expondo participantes negros a casos de racismo, joga luz sobre um problema real e cotidiano no Brasil. A diferença crucial é que o programa, transmitido 24 horas por dia, transforma comentários que muitos fariam “sem ninguém ouvir” em debates públicos, alcançando centenas de milhares de espectadores.
O Brasil é um país fundamentado em uma estrutura que perpetua o racismo, resultando na experiência inevitável de violência para qualquer indivíduo negro. A presença persistente dessa realidade racial impõe-se de maneira sistemática ao longo da vida, tornando-se uma experiência compartilhada por todos aqueles pertencentes a essa comunidade; por isso, é inevitável o debate.
Em janeiro do ano passado, uma reportagem da BBC News revelou um aumento alarmante de 106% nas denúncias de intolerância religiosa a 2022. Notavelmente, a maioria dessas denúncias foi apresentada por praticantes de religiões de matriz africana. Surpreendentemente, 60% das vítimas eram mulheres. No entanto, é plausível que esse número seja subestimado, considerando que nem todos os casos recebem a mesma atenção que um reality show de grande audiência e que muitas vítimas hesitam em denunciar devido ao receio ou à falta de confiança no sistema judiciário.
A gente não quer só se engajar no ativismo, a gente também quer se divertir!
Estas duas coisas não deveriam se opor. É importante reconhecer o direito de todos a consumirem entretenimento sem enfrentar diversas formas de racismo no pacote. Exigir diversidade na TV é legítimo, assim como é o direito das pessoas negras de se entreterem sem sofrer violência.
A responsabilidade agora é de todos nós para aproveitarmos a repercussão racial em um dos programas de maior audiência do país como vitrine para iluminar pautas raciais com sensibilidade, cientes de que, mais cedo ou mais tarde, essas discussões precisarão acontecer. Também é fundamental entender que o engajamento não deve se limitar às redes sociais, pois as conversas sobre questões raciais devem obrigatoriamente ir além desse ambiente. Além de participar ativamente online, é essencial promover diálogos offline, em nossas comunidades, escolas e ambientes de trabalho, ampliando o alcance das discussões para fora das plataformas digitais.
Frente a essa conjuntura, é plenamente justificável acolher a oportunidade que o Big Brother Brasil oferece para a exposição e discussão das complexidades raciais ainda presentes em nossa sociedade. No envolvimento com o entretenimento, torna-se imperativo manter os olhos abertos para as questões genuínas que o programa destaca, uma vez que a sua ampla visibilidade proporciona uma oportunidade relevante para abordar temáticas importantes relacionadas à igualdade racial e ao combate ao preconceito. A virada de chave está na participação ativa que não se limite ao período do reality show, mas se torna um compromisso de vida em combater preconceitos e promover a inclusão, mesmo quando as câmeras do programa se apagam.
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