28 outubro 2021

O dia em que decidi não pautar a minha vivência pela existência branca.

E como isso mudou a minha forma de existir num mundo branco, racista e heteronormativo.

Essa semana fiquei pensando sobre como a nossa vivência é pautada, no sentido mais extremo, na autodefesa e preservação da vida. O fato de eu, mulher preta e sapatão, ter que me defender todo o tempo, transformou a minha vida num ringue em vários momentos. E desde que assisti a série documental sobre o “tombo” da Karol Conká em um reality show, fiquei pensando o quanto as nossas feridas podem, muitas vezes, se transformar em justificativa para ferir o outro. A gente aprende muito cedo que, se alguma mãe vai chorar, o certo é preferir que a mãe do outro chore, não a minha.


Foto: Márcia Vasconcelos | @filhadesilvia

Mas no meio de todo esse comportamento em modo de defesa, corremos o risco de passar a pautar a nossa vida pela branquitude e a existência de pessoas que não se racializam, ou seja, não se entendem como grupo. 


O que eu quero dizer com isso, afinal de contas? Você já ouviu algo como não vou fazer isso porque é coisa de branco? ou, pior ainda, vou fazer isso porque, se o branco faz, eu posso fazer também. A branquitude não se entende como grupo específico, logo, se entende como universal. Pode tudo, têm opinião sobre tudo e conhecem (em teoria) sobre todas as pautas. Então, o que é que nós definimos como coisa de branco?


A teoria de que é preciso ocupar espaços apenas para contrapor a branquitude não se sustenta como modo de vida. Há outros motivos para que nós, pessoas negras, possamos escolher onde, quando e como estaremos. É injusto dar a nossa vontade e o nosso poder de escolha na mão do outro.


Uma vez que é impossível se reconhecer como ser autônomo se todas as suas atitudes são primariamente baseadas na existência de outra pessoa, afirmo com tranquilidade que não me interessa estar num mundo onde só consigo existir se for para ser contra ou em função de uma branquitude que sequer me humaniza. Não faz sentido pautar a minha existência pelo racismo, a branquitude já faz isso. Sim, eu sou uma mulher preta que sofre racismo, mas, a minha existência não se limita a este fato. O racismo é um cachorro da branquitude, portanto é responsabilidade deles fazer com que este cachorro deixe de me morder, não eu a vítima quem deve moldar a minha vida para evitar os ataques.


Assim, eu decidi que não deveria pautar a minha vivência pela existência branca. E isso mudou a minha forma de existir num mundo branco, racista e heteronormativo. Onde agora, embora eu ainda viva com um grande alvo nas costas, consigo não mais estar em posição de ataque 100% do tempo, pensando e agindo para atender uma expectativa, atacar ou me defender da branquitude.


Os ataques racistas são inevitáveis, criar uma carapaça não vai me impedir de sofrer racismo. Atacar antes para me defender também não. Acordar já pensando em agir, comer, falar, sorrir, me comportar para ser contra ou a favor de um sistema que quer resumir a minha existência ao racismo não me parece muito produtivo e saudável.


A negritude existe não somente em contraposição a branquitude. A nossa existência não é o outro lado da balança, não somos o contrário da branquitude, o que justificaria deixar de fazer tudo que é de branco e vice-versa. O primeiro passo para humanização do povo negro é conseguirmos pautar a nossa existência por nós mesmos. Viver uma vida sem amarras, nos defendendo quando o fato acontecer e com a tranquilidade mental de não considerar a nossa pele uma armadura de guerra desde da hora que acordamos.



2 comentários:

  1. Texto de extrema importância nega, a gente começa a se avaliar em tantos aspectos, maravilhoso texto

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  2. Não ser o oposto de alguém é liberdade para ser o que se é...

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