A humilhação pública de MC Poze revela que, no Brasil, a justiça ainda é uma encenação seletiva — e os corpos negros seguem no centro do palco da violência simbólica
Na última quinta-feira (29), MC Poze do Rodo foi preso por agentes da Delegacia de Repressão aos Entorpecentes (DRE), em casa, no Recreio dos Bandeirantes, zona oeste do Rio de Janeiro. As imagens da prisão viralizaram nas redes e na imprensa: Poze aparece sem camisa, descalço, algemado, acuado e acompanhado pela esposa, em uma cena que mais parece um castigo público do que o cumprimento de um mandado. A pergunta que precisa ser feita é: por que essa humilhação era necessária?
Como historiadora, é impossível não fazer o paralelo com o pelourinho — símbolo da violência colonial. Diferente do que muitos pensam, pelourinho não é só um ponto turístico de Salvador. Era uma coluna alta de pedra ou madeira, instalada em praça pública, onde escravizados eram amarrados e castigados para servirem de “exemplo” aos demais. Era sobre punição, sim. Mas também sobre controle social, sobre demonstrar que, para os corpos negros, não basta perder a liberdade: é preciso perder também a dignidade.
Mais de um século após o fim legal da escravidão, o Brasil segue praticando castigos públicos contra corpos negros. A prisão de Poze é mais um capítulo desse ciclo. E que fique claro: não estamos aqui para discutir o suposto crime. O que está em debate é como o Estado escolhe apresentar esse homem negro à sociedade e a quem mais interessa que ele seja exposto assim.
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Prontuário de Poze do Rodo — Foto: Reprodução/TV Globo |
Agora, a própria admissão do funkeiro ao sistema prisional foi manchete: ele teria declarado ter ligação com o Comando Vermelho. Essa informação, por si só, foi usada para sugerir envolvimento direto com o crime. Mas há um ponto negligenciado: as favelas do Rio de Janeiro são profundamente setorizadas. Declarar afinidade com uma facção pode ser, na prática, uma medida de sobrevivência. Poze é cria da Favela do Rodo, em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro, uma comunidade supostamente dominada pelo CV. Se fosse colocado em presídios sob controle de facções rivais, sua vida estaria em risco. Isso não é confissão de crime: é autoproteção, por isso, este é um dado que exige leitura crítica, não julgamento automático.
Enquanto isso, o contraste com outros casos salta aos olhos. Nas redes, seguidores lembraram de um jovem branco que atropelou e matou uma pessoa dirigindo a quase 200 km/h, sob efeito de drogas. Passou dez meses foragido e, ao se apresentar, apareceu de roupa branca e limpa, sem algemas, sem exposição, sem espetáculo. Teve a chance de controlar a própria narrativa e já está solto, segundo informações do portal Globo. Já o Poze, negro, funkeiro e favelado, teve a sua imagem capturada, divulgada e explorada sem qualquer respeito à sua humanidade.
O mesmo vale para figuras públicas como o político Roberto Jefferson, que em 2022 recebeu a Polícia Federal a tiros de fuzil e granadas, ferindo agentes. Ainda assim, foi preso sem que sua imagem fosse divulgada em condições humilhantes, pelo contrário, foi convidado a tomar café com agentes da Polícia Federal que estavam ali para detê-lo. Não há simetria, há seletividade. E ela tem cor, classe e CEP.
É preciso entender que o que está em jogo não é só justiça, mas memória. A maneira como corpos negros são exibidos em situações de punição reforça um imaginário coletivo construído desde os tempos da colônia: o da subjugação, do medo e da criminalidade atrelada à cor da pele. A mídia, ao replicar essas imgens sem filtro, atua como herdeira do pelourinho. A polícia, ao promover esse tipo de registro, participa de um teatro de crueldade que serve mais para intimidar do que para informar ou mesmo impedir o cometimento de crimes.
A indignação popular mostra que cada vez mais pessoas percebem a farsa. Mas o sistema ainda resiste. Ainda lucra com a humilhação. Ainda produz manchetes às custas da dor negra.
Por isso, é preciso dizer: corpos negros não são espetáculo. Não somos inimigos públicos, ainda que suspeitos que ainda vão passar por julgamento. E enquanto a justiça brasileira continuar tratando brancos como cidadãos e negros como alvos, ela seguirá sendo injusta.
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