23 outubro 2017

FEMINISMO NEGRO: CADA UMA COM A SUAS OPRESSÕES E DEMANDAS

Uma coisa é fato, se declarar uma mulher feminista sendo uma mulher negra não é fácil, é pesado e carrega um fardo que nem todas conseguem, ou mesmo querem, carregar. Uma das discussões que mais me afeta e me faz ficar atenta é a discussão quanto à liberdade dos nossos corpos e o peso da objetificação sobre a nossa liberdade. Se posicionar politicamente como uma mulher feminista é, embora não devesse ser, uma missão difícil e por vezes cheia de ressalvas, quando se é uma mulher negra a ressalva vem quase sempre acompanhadas da necessidade de explicar que há sim um outro feminismo, negro e que abarca outras pautas muito diferentes.
Primeiro, é preciso deixar bem claro que se rotular ou não feminista não faz muita diferença quando se é pelas mulheres e quando se tem ao menos consciência de que vivemos numa sociedade historicamente machista, o feminismo não precisa de gente "falando" mais do que precisa de gente fazendo. Toda a nossa produção cultural e social e masculina, branca, heteronormativa e, muitas vezes, eurocêntrica, então ter consciência disto e enxergar que é necessário uma mudança estrutural não te obriga necessariamente a se declara feminista, o feminismo também tem a ver com você, mulher, poder fazer o que quiser. Dito isto, outra coisa se faz importante: antes de ser lida como mulher nós negras somos lidas como PRETAS e na nossa sociedade isso vem primeiro determinando a forma como o mundo se relaciona conosco no público e no privado. Enquanto as Sufragistas lutavam lá no final do século XIX por direitos feministas, entre eles o voto, as mulheres negras buscavam ainda o direito de serem enxergadas como humanas, depois mulheres e, depois quem sabe, almejarem o direito ao voto e isto falando do contexto no Reino Unido, para nem dizer que até 1888 as mulheres negras brasileiras estavam em regime de escravidão.
Angela Davis, em seu livro publicado pela editora Boi Tempo, "Mulheres, Raça e Classe", trata no primeiro capítulo sobre a "não feminilidade" (com licença para chamar assim) das mulheres negras estadunidenses no período da escravidão. Além de descrever sobre a rotina destas mulheres, fala sobre os papéis masculinos e femininos que, para quem explorava mão de obra escrava, era praticamente a mesma coisa na hora de desempenhar as tarefas imputadas pela escravidão.
Dito tudo isto, é diante deste contexto que eu me pego a analisar o nu da mulher negra e como isto não seria um símbolo de liberdade dentro da nossa história. O corpo da mulher negra, sempre foi tratado como mercadoria, muito barata, diga-se de passagem, e isto é inegável, objetificação, as vendas, os estupros, tudo isto estão no nosso passado, no nosso presente e, a menos que continuemos lutando, também no nosso futuro. O nosso corpo "nu" não é revolucionário, basta conhecer um pouco da história das nossas ancestrais para pensar sobre isto e não falo aqui do nu "abstrato", "poético", fotos que inclusive tem o poder muitas vezes de resgatar a essência da nossa beleza, não é isto. Falo das fotos "peladas" mesmo, "no seco", o famoso "MANDA NUDES!".
Não é preciso ir muito longe da nossa realidade para enxergar que a mulher negra é objetificada e a sociedade normalizou isto, a imagem da globeleza besuntada em óleo e purpurina é comum e aceita pelo nosso imaginário social, assim, a mulher negra vai sendo culturalmente perpetuada nesse papel de "mulata sensual" e, como há séculos nosso corpo vem sendo exposto, se colocar de novo nesse papel de "carne exposta" não é nenhuma novidade revolucionária. Isto não quer dizer, claro, que seja proibido, mas, não é uma pauta negra assim como das mulheres brancas, buscar poder andar com o corpo descoberto assim como os homens, lembram-se de Angela Davis citada acima? Nós já estávamos sendo equiparadas aos homens há bastante tempo. Não é uma questão de ter pautas melhores ou piores, quem sofre mais ou menos, não é uma "Olimpíada de Opressão" e não estamos aqui para disputar quem sofre mais, mas, é preciso enxergar que existem sim opressões diferentes e tratar do discurso como "somos todas vítimas da mesma opressão" é apagar pautas de mulheres negras, feministas ou não, que sabem de demandas muito específicas para nós e que nunca foram demandas de mulheres brancas.
Outro ponto quando falamos da revolução que é poder reivindicar as nossas pautas, nos declarando ou não feministas, aparece muito claramente no "Dia das Mulheres", a polêmica do "quero flores X não quero flores" todo os anos é debatida por nós, mulheres negras, convidando a refletir sobre um ponto importante: nós, mulheres negras, recebemos flores? E aqui as flores tem muito mais um caráter simbólico do que o material propriamente dito, é dedicado a nós este cuidado cotidiano? O estereótipo mais comum da mulher negra é o que descreve uma mulher forte, insensível, que aguenta tudo, que é tratada "de qualquer forma", a amante, a clandestina, aquela cuja as práticas sexuais não têm limite, então, qual o cuidado cotidiano seria reservado à nós? É preciso enxergar que nós queremos sim as flores, junto com o respeito, mulheres negras ainda não puderam (historicamente falando da sociedade como um todo e não casos pontuais) experimentar este cuidado e zelo, que por vezes pode oprimir, que mulheres brancas experimentam cotidianamente e já se consideram aptas a ponderar. Como já foi dito, mulheres negras muitas vezes não são sequer consideradas mulheres.
Refletir a distinção das pautas não quer dizer que vamos ignorar todas as demandas convocadas das mulheres brancas (muitas vezes podem ser nossas também), mas, quer dizer sim que vamos nos preocupar em resolver aquilo que nos oprime olhando para o nosso passado, nosso presente e desejando um futuro melhor. Não há como saber onde se quer chegar, se não soubermos de onde viemos, no caso das nossas ancestrais foi um passado de desumanização, exposição, estupros, comércio de nossos atributos (Sarah Baartman tem sua história para não nos deixar esquecer) e nos tratando como se fossemos sempre exóticas.
Nossas ancestrais não eram "donas de si" enquanto tinham seus corpos expostos, medidos, invadidos e sempre nus. E, na revolução de se vestir, não se enganem acreditando que este é um discurso puritano ou moralista, pedindo que mulheres negras se cubram dos pés à cabeça ou "se deem ao respeito" se "vestindo direito", não, não é nada disto. Eu estou falando de nos vestirmos quando e como quisermos, mas tendo em mente que não há mais obrigação de cumprir o padrão "mulata exportação", desde que a escolha de como se vestir seja sua e isto lhe faça bem está tudo liberado, o que buscamos com certeza é a certeza de que não estamos mais servindo de atração para a sociedade que se criou nos expondo nuas em gaiolas.


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