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08 novembro 2019

Sankofa: é sempre possível voltar ao passado para dar novo sentido ao presente

novembro 08, 2019 0
Resenha crítica apresentada ao curso de Literatura Afro Brasileira - Literafro, da formação transversal em Relações Étnico-raciais e História da África e Cultura Afro-brasileira¹.

Imagem de Pexels por Pixabay

Eduardo Assis Duarte graduou-se em Letras pela UFMG em 1973, é mestre em Literatura Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro e doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada, pela USP desde 1991. Aposentado desde 2005, mantém vínculo voluntário com a UFMG, atuando como professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Letras. Participa do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade - NEIA e coordena o Literafro Portal da Literatura Afro-brasileira.
O artigo Margens da história: a revisitação do passado na ficção afro-brasileira, que foi publicado em 2015 e hoje encontra-se disponível no portal Literafro, trata sobre a característica de discurso sociológico do romance afro-brasileiro, pensando na perspectiva política na qual estes autores estão inseridos.
A escrita literária afro-brasileira, ou mais recentemente “negro-brasileira”, é marcada pelo resgate de um passado que, para uma certa camada da nossa sociedade, já passou de fato. Mas que para aqueles que identificam o local da sua escrita como literatura negro-brasileira, esse passado ainda precisa ser discutido, revisitado e rememorado para ter uma espécie de solução ou o mais próximo disto. Este local da escrita da literatura afro-brasileira é também outro marcador importante na tarefa de descartar o mito da imparcialidade de quem escreve. Mito este que é geralmente invocado sob a justificativa - parcial - de que estas são questões identitárias, no entanto, Duarte fala da importância de debater estas questões, e é quando o romance ganha um viés de “documento sociológico” (Jean-Yves Mérian - 2000). 
A memória é usada na literatura tanto como chave de leitura do público que encara esta obra, como na composição dos personagens e as narrativas de suas histórias. Memórias coletivas do povo são levadas em consideração 
"O texto de Nei Lopes mescla falas e tempos distintos, num dialogismo entre passado e presente que dá ao conto ares de crônica histórica inusitada e plural."
A memória traumática de uma escravidão ainda que não vivenciada diretamente mas sentida graças aos elos atemporais que são construídos com seus semelhantes, o tal eu mais amplo (DUARTE, 2019) é uma construção que muitas vezes se dá através da escola e colegas de turma, desde a infância até adultos.
"À memória traumática da escravização acrescenta-se a da leitura enviesada produzida pelo discurso pedagógico, que faz da escola aparelho ideológico disseminador do racismo."
Este reconhecimento do seu semelhante na memória também é debatido pela autora Vilma Piedade em sua obra, Dororidade. Falando especificamente do Feminismo Negro a autora, fazendo uma referência a Sororidade, traz a discussão sobre como mulheres negras se reconhecem e se solidarizam a partir da dor. 
Memórias de crueldade que estariam relegadas ao esquecimento ganham registros e forma, a partir da voz do lado “vencido” da história

"O texto se faz ainda com o depoimento dos pretos velhos, tornado causo e lembrado pelos mais jovens. Nestes momentos o tom sobe e a crueldade do passado aflora sem meias palavras."

Desta forma a história oral, que acaba não resistindo muito ao tempo, devido as suas limitações intrínsecas, acaba ganhando um registro bastante duradouro dentro destes romances históricos.
O autor também procura demonstrar as consequências de séculos de exploração, escravidão, racismo e violências várias, 

"Suas atitudes resultam de um passado que não se restringe à individualidade. Remontam ao processo que atinge corpo e identidade negros submetidos ao rebaixamento histórico que os exclui dos padrões de beleza oriundos da branquitude."

Para Duarte a literatura afro-brasileira contribui para a humanização e a fuga dos estereótipos do negro, 

"O tom anti-laudatório propicia, por outro lado, a recusa ao discurso da vitimização pura e simples do negro."

E demonstra que o que houve na verdade foi a desumanização de um sistema e não dos sujeitos que, embora violentados, continuavam sendo seres humanos, com seus defeitos e qualidades, seu lado bom e lado ruim, como todo ser social. Não ficando condicionados ao lugar de monstros, vítimas ou infans. 
Estes são romances que ambientam e humanizam favelas, ocupações, morros, senzalas e espaços marginais da sociedade que são majoritariamente ocupados por pessoas negras, além de ser também um espaço para que aqueles que professam religião de matriz africana possam falar de sua fé sem estarem rodeados pelos estereótipos e sensacionalismos da escrita não-negra.
A literatura afro-brasileira é então um espaço político de afirmação, reafirmação, retorno e avanço ao mesmo tempo para os escritores que fazem parte desta comunidade, com um propósito real de resgate e registro de todos os aspectos que rodeiam a nossa população. 
Humanizar é tirar o véu da colonização, ao escrever suas próprias histórias e memórias históricas, o literato afro-brasileiro insere sua obra num local de resistência política há um apagamento sistêmico ou o “memoricídio” da história desta parte da população.


¹ In: SISCAR, Marcos; NATALI, Marcos (Org.). Margens da democracia: a literatura e a questão da
diferença. Campinas, SP / São Paulo, SP: Editora da Unicamp / Editora da USP, 2015, p. 167-189.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUARTE, Eduardo Assis. Margens da história: A revisitação do passado na ficção afro-brasileira. 2019. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/151-eduardo-de-assis-duarte-margens-da-historia>. Acesso em: 05 out. 2019.

FANON, Frantz. Guerra colonial e distúrbios mentais. In: FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora Ufjf, 2015. Cap. 5. p. 285-358. Tradução de: Les damnés de la terre.

GONZALES, Lélia. RACISMO E SEXISMO NA CULTURA BRASILEIRA. Ciências Sociais Hoje: ANPOCS, São Paulo, v. 5, n. 8, p.223-244, nov. 1984. Anual. VII Encontro Anual da ANPOCS. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf>. Acesso em: 08 nov. 2019.

14 setembro 2019

AS PALAVRAS DE MULHERES NEGRAS SÃO ATRAVESSADAS DE SILÊNCIO

setembro 14, 2019 0
Resenha crítica apresentada ao curso de Literatura Afro Brasileira - Literafro, da formação transversal em Relações Étnico-raciais e História da África e Cultura Afrobrasileira¹.
1 - Míriam Alves, Geni Guimarães e Aline França (Autoras Afrobrasileiras).

Moema Parente Augel possui graduação em Letras Neolatinas pela UFBA (1961), mestrado em Ciências Humanas também pela UFBA em 1974 e doutorado em Letras Vernáculas pela UFRJ em 2005, desde a sua formação esteve atuando principalmente com literatura e cultura guineenses, literatura afro-brasileira e literatura de viagem (séc. XIX). É professora aposentada, tendo lecionado Português e Cultura Brasileira nas Universidades de Bielefeld e Hamburgo ambas na Alemanha. O texto analisado nesta resenha foi publicado originalmente em 1996 e republicado pelo site Literafro.
Ao longo do artigo a autora recupera autoras negras que tem bastante marcadas em sua sua escrita características que Augel descreve como “próprias” da escrita de mulheres negras, tais como a busca pela autodefinição, contar sobre as próprias vivências, experiências, uma espécie de convocatória de outras pessoas negras para se pensar racialmente e também o convite aos não negros de refletirem sobre as dores de viver numa sociedade cuja cor da pele determina maior ou menor sofrimento social.

O falar sobre ser negra em todos os seus aspectos tais como a negritude, estética, lugar social, implicações de classe, traz junto da ação política disto a conscientização de tomar a atitude de reclamar este lugar e deixar de ser, portanto, a periferia de uma fala branca para tornar-se o centro da própria fala, neste caso através da literatura.

O silenciamento dos personagens negros significa também o aumento da repercussão da voz de sujeitos eurocêntricos que com seu discurso escondem o passado escravocrata brasileiro, bem como as violências físicas, psicológicas e epistêmicas praticadas contra o sujeito negro. O silenciamento seria portanto mais uma violência retroalimentando e mantendo outras que são praticadas contra a população afrobrasileira. Esta população que segundo Augel se revolta através da escrita, como demonstrado nas citações de três autoras com maior destaque por Augel.

A autora cita a produção Cadernos Negros como uma publicação que dá voz à escritores negros. É importante ressaltar que esta publicação pode repercutir a voz destes, que já têm voz própria (SPIVAK, 2014) e em forma de um coletivo autônomo fazem com que as suas vozes sejam reverberadas de maneira ampla entre aqueles que leem a publicação. Mas a voz já é destes indivíduos, primariamente, mesmo que inicialmente não conseguissem completar a dialética de falar e ser ouvido (SPIVAK, 2014). Para citar um exemplo contemporâneo de produções como o Cadernos Negros podemos lembrar da coleção Feminismo Plurais trazida pela filósofa Djamila Ribeiro, embora haja diferenças importantes, como por exemplo o tino totalmente comercial dado a coleção feita com recursos privados e suporte de uma editora formal. No caso dos Cadernos Negros Augel inclusive frisa o fato da produção ser totalmente financiada pelos próprios autores contidos em cada volume. 

O “eu” encontrado nas produções negras, para a autora, seria o eu poético que, segundo Stuart Hall é uma construção do século XIX em relação do mundo moderno, "um sujeito em relação com os outros" (AUGEL, 1996), o tal sujeito sociológico acrescido das emoções advindas da experiência de ser negro ou das memórias ancestrais carregadas pelos que descendem da origem africana. O eu poético é aquele que mistura identidade e individualidade com a sensação em relação ao externo, a sua coletividade.

Augel destrincha então trecho de obras de três autoras da literatura afro-brasileira, são elas: Míriam Alves, Geni Guimarães e Aline França. Cada uma com suas características e pontos de destaque são pensadas por Augel como representantes desta escrita feminina e negra. A escrita específica da mulher negra vem para confrontar certos estereótipos racistas que são impostos a este grupo social. Uma literatura marcada muitas vezes por denúncias, um dos temas destacados pela autora seria esta “dupla colonização”, ou seja, a opressão por gênero e raça sofrida por mulheres negras e sinalizada em suas produções. A escrita das mulheres negras seria então uma elaboração que reflete uma identidade marcada por raça e gênero, ao mesmo tempo, mas que também fala da vida cotidiana, de maternidade, sexualidade e assuntos que “normalizam” a existência negra.

O embranquecimento social é um risco que a pessoa negra corre ao tentar acessar ou ascender socialmente numa sociedade racista (FANON, 1952), para isto serve como ferramenta do racismo o auto silenciamento que acaba sendo local seguro para uma auto colonização. O sujeito negro procura reprimir suas características para caber num padrão branco que está dado automaticamente. Em especial risco estão as mulheres negras que para fugir do local hiperssexualizado no qual são colocadas, acabam assumindo este outro lugar onde são oprimidas e contidas. Como ferramenta de luta contra isto está o autorreconhecimento e a colocação as vezes forçada do “eu” negro em certos espaços como a literatura. Isto promove mudanças de estrutura nos indivíduos negros e na sociedade racista, o que Augel chama de mecanismo de descentramento (AUGEL, 1996). A literatura feita por mulheres negras acaba ocupando um espaço de construtora de uma autoestima coletivizada.

Recuperar estas autoras seria subverter a ordem da historiografia brasileira que coloca como cânone o que é masculino, branco e eurocêntrico. Quando são colocadas as figuras negras como “normais”, como é o caso da escrita de Geni Guimarães ou mesmo quando são colocadas como seres fantásticos e poderosos, como no romance de Aline França, ocorre um deslocamento do senso comum sobre o negro e isto é positivo para o coletivo. A literatura neste caso está sendo utilizada “como um instrumento de transformação de uma realidade que nega o direito à especificidade, enquanto indivíduo e enquanto coletivo” (AUGEL, 1996).

¹ Versão alargada do artigo: "Quando elas rompem o silêncio. Literatura feminina afro-brasileira”, in: Lusorama. Zeitschrift für Lusitanistik: Revista de Estudos sobre os países de Língua Portuguesa, Frankfurt, FFM, n°30, p. 5-25, jun.1996. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/157-moema-parente-augel-e-agora-falamos-nos>. Acesso em: 19 ago. 2019.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. 111 p. (Justificando).

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 3. ed. Belo Horizonte: Ufmg, 2014. 174 p. Tradução de: Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa.

XAVIER, Giovana. Ciência, lugar de fala e mulheres negras na academia: A solução do problema brasileiro passa pela construção de novas epistemologias e pela necessidade de localizar o saber que se produz na ciência. 2018. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2018/Ci%C3%AAncia-lugar-de-fala-e-mulheres-negras-na-academia>. Acesso em: 25 ago. 2018.

AUGEL, Moema Parente. “E Agora Falamos Nós”: Literatura Feminina Afro-Brasileira. 2018. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/157-moema-parente-augel-e-agora-falamos-nos>. Acesso em: 04 set. 2019.

FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008. 193 p. Tradução e Revisão de Texto Renato da Silveira. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2013/08/Frantz_Fanon_Pele_negra_mascaras_brancas.pdf>. Acesso em: 04 set. 2019